É recorrente a nossa escrita sobre o tema da Advocacia Colaborativa. Não por acaso, pois estamos diante de um método autocompositivo que dá voz às pessoas em conflito, conjugando diálogo, afeto, direito e evitando o recurso ao judiciário. Agora imagine uma situação em que por uma razão ou outra o judiciário se tornou inevitável. Seria possível pensar uma abordagem similar e colaborativa em nossos tribunais? Utopia? Segundo a Juíza americana Sue Cochrane, em seu artigo Putting a heart into the body of law[1], tal fato não só é possível como é absolutamente necessário.
Precisamos alinhar razão e coração, é o que ela nos diz. A lei é conhecida por ser lógica e sem paixão. O pensamento intelectual, analítico e linear é o que prevalece nos tribunais. Ocorre que na admirável busca pela verdade e pela justiça, os tribunais podem, inadvertidamente, negar a humanidade das pessoas a quem devem servir. Indiscutivelmente os seres humanos não podem ser resumidos a conceitos legais abstratos.
Ao menos no âmbito do direito de família, é evidente que as questões enfrentadas são em geral muito mais da ordem do coração do que da razão.
Esse entendimento e um bocado de insatisfação com o modelo judiciário existente fizeram com que Sue incorporasse diversas práticas pacificadoras em sua atuação como magistrada, incluindo a meditação e a abordagem colaborativa. Stuart Webb, o precursor das Práticas Colaborativas foi obviamente sua fonte de inspiração.
A título de exemplo, encontramos no artigo algumas ações simples, porém não menos importantes de Sue para com seus jurisdicionados: o envio de uma carta pessoal da magistrada para as partes com um convite para comparecer em seu gabinete e conversar sobre os danos potenciais aos filhos e a eles próprios na hipótese de seguirem a clássica disputa pelo tribunal; o recebimento das partes sem vestimentas típicas de uma magistrada americana, sem a formalidade e lugares de poder da sala de audiência; a abertura do diálogo e o empoderamento das partes para uma conversa franca e centralizada em suas necessidades.
Além de Stu Webb, Sue também nos conta no artigo que foi inspirada pelos princípios guias da seguinte invocação de Dalai Lama: “Seja gentil sempre que possível. E é sempre possível”.
O artigo de Sue é uma importante fonte de inspiração e de reflexão para pensar novos modelos de abordagem jurisdicional em matéria de direito de família. Inserem-se nesse contexto as 5 importantes dicas de mudança recomendadas por Sue a uma Corte que de algum modo se proponha a inserir o “um coração no corpo da lei”:
Colocar as pessoas em primeiro lugar: Famílias em crises necessitam de um lugar que as acolha em todos os aspectos, incluindo suas emoções. Elas devem ser respeitadas, ouvidas e incluídas. É preciso criar um sistema comprometido com essas questões acima de todas as outras agendas.
Tratar as pessoas com gentileza e compaixão: As pessoas precisam que sua história seja ouvida. Talvez seja essa a verdadeira essência de uma “audiência”. As pessoas precisam ser aceitas com dignidade, mesmo com seus equívocos, suas raivas, seu estresse e sua dor. Isto permite que elas escolham um caminho congruente com seus valores mais profundos.
Dar voz às pessoas: No nível mais básico, acesso a justiça é permitir que as pessoas tenham voz. Tribunais de família não deveriam julgar famílias que pedem ajuda. Ao invés, tribunais deveriam auxiliar e empoderar as pessoas a resolver seus próprios problemas com respeito e carinho.
Design – investir em espaços desenhados para as pessoas: O espaço físico de um tribunal de família deveria ser redesenhado com foco nas necessidades daqueles que o utilizarão. Incorporar arte e design contribui para acalmar as pessoas e inclusive auxiliar ou prevenir traumas.
Realocação de recursos: Menos de 5% dos casos que chegam ao judiciário de família americano efetivamente seguem o curso de um processo judicial até o final. Por que então não direcionar os recursos, treinar juízes e focar esforços em ações que contribuam para a composição?
[1] Cochrane, Sue. Putting a heart into the body of law in The Collaborative Review. Winter 2014/ Volume 15, issue 1.